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domingo - 26/02/2017 - 10:22h

A caverna de Platão

Por François Silvestre

Há quem denomine de Mito, Alegoria ou Parábola. A nomenclatura é secundária. Até porque essa imagem terrível, constante da obra reflexiva do filósofo clássico, possui contornos que abrange essas e outras denominações.

A caverna abriga prisioneiros que nunca conheceram a liberdade. Nascidos e vividos no obscuro da desinformação. Ou na informação sem escolha, sem distinção, sem questionamento. A informação imposta, que aliena.

Acorrentados, os habitantes da Caverna só veem “sombras” na parede da furna, que eles julgam serem sombras de vivos. São apenas reflexos de estátuas que se colocam entre a parede e uma fogueira. Isso se passa imutavelmente. E essa é a visão do único e imposto conhecimento.

Na premissa de que um dos acorrentados consiga sair da caverna, ele se deslumbra com o mundo real. E generosamente lembra-se dos companheiros aprisionados. Mas a solidariedade não terá reconhecimento, com seu gesto e sua volta.

Será considerado louco ou mentiroso, pois não entra na cabeça da ignorância cristalizada qualquer lampejo de negação do mundo apresentado. O mundo dos acorrentados é aquele e não há possibilidade de imaginar um mundo diferente.

Como imaginar a luz do Sol, o verde das plantas, a brisa dos ventos, para quem só “vive” na caverna? Único mundo conhecido.

É um mito na medida em que sobrevive, mesmo sem existir, em todos os tempos. É uma alegoria na medida em que mantém a imagem, mesmo na ausência de um mito heroico individual. E é uma parábola, pois oferta, sem imposição, uma moral.

Saramago, o grande escritor português, fez um desabafo reflexivo sobre o tempo de hoje: “Nunca em toda a história da humanidade, houve um tempo tão próximo da Caverna de Platão”.

É de se entender que o Ensaio sobre a Cegueira carrega muito dessa observação. A reflexão muito mais de alerta do que de pessimismo.

O curioso é que a alegoria da Caverna de Platão insere-se numa obra denominada “A República”, numa parte dos diálogos socráticos na casa de Polemarco, filho de Céfalo. Coincidência ou premonição?

A alienação midiática, que nos oferece imagens de bonecos aparentemente vivos. A globalização que apequena, acorrentando todos no interior de uma caverna global. As mentiras oficiais a chamarem de loucos os que ousam informar que há luz fora da caverna. Que há ventos, águas, bichos e plantas.

A generosidade virou sinônimo de desconfiança. A violência banalizou-se, iludindo com sombras na parede da caverna. A esperança esmorece ante a fogueira das imagens falsas. Ninguém, fugido do ambiente mórbido, ousará voltar para informar sobre a luminosidade externa ou o ar da liberdade.

E se na alegoria da exceção ainda houver lugar para a solidariedade, o solidário retornante quedar-se-á ante o escárnio dos que preferem a mentira cômoda da caverna. Té mais.

François Silvestre é escritor

* Texto originalmente publicado no Novo Jornal.

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. Inácio Augusto de Almeida diz:

    “Será considerado louco ou mentiroso, pois não entra na cabeça da ignorância cristalizada qualquer lampejo de negação do mundo apresentado. O mundo dos acorrentados é aquele e não há possibilidade de imaginar um mundo diferente.”
    E assim o que tenta mostrar que existe um outro mundo onde a angústia se acaba e a dor e a solidão desaparecem como por encanto é tachado de LOUCO, INVEJOSO, RECALCADO, FRUSTRADO, INEXEQUÍVEL.
    “Nunca em toda a história da humanidade, houve um tempo tão próximo da Caverna de Platão”.
    Saramago, disse isto.
    Eu digo:
    Nunca em todo o mundo, houve uma cidade tão próxima da Caverna de Platão como Mossoró. Em que outro lugar do mundo há um trabalho tão coordenado de uma mídia amestrada para ” …chamarem de loucos os que ousam informar que há luz fora da caverna. Que há ventos, águas, bichos e plantas.”?
    Em que outro lugar acontece com tanta força a inversão de valores como em Mossoró?
    Mossoró que estende tapetes vermelhos até nos seus templos aos condenados por improbidade, corruptos que ocupam sempre os primeiros lugares nas igrejas e que afrontam até mesmo membros de poderes que deveriam se fazer mais respeitar.
    “A generosidade virou sinônimo de desconfiança. A violência banalizou-se”
    É preciso dizer onde isto acontece?
    Onde ninguém confia em ninguém e todos gravam todas as conversas? Onde mata-se no atacado e no varejo e furta-se de milhões a simples aparelhos celular, passando por empréstimos consignados de cujas prestações tentam se eximir do pagamento deixando ao contribuinte saldar a obrigação contraída por saberem que, mesmo se descoberto na pilantragem, nada lhes acontecerá porque a IMPUNIDADE campeia?
    Não, não é preciso dizer onde tudo isto acontece e quem fala a verdade é tratado como MONSTRO.
    AO MESTRE FRANÇOIS SILVESTRE OS MEUS PARABÉNS POR TÃO BELO TEXTO.
    TEXTO NO QUAL COLOCA A CAVERNA PARA REFLEXÃO DOS QUE AINDA CONSEGUEM PENSAR.

  2. Inácio Augusto de Almeida diz:

    Mestre François Silvestre
    Publiquei no Blog COMBATE À CORRUPÇÃO – //combatecorrupcao.blogspot.com.br/ um comentário sobre este seu artigo.

  3. naide maria rosado de souza diz:

    Brilhante Artigo, François Silvestre. Reflito se não estou na caverna quando vejo, lá fora, a generosidade. Não, não estou na caverna. Há pouco tempo
    ajudei alguém caído na rua. Era a descrição perfeita ou a mais próxima do que se imagina um farrapo humano. Chamei o Corpo de Bombeiros e algumas pessoas, poucas, se juntaram a mim na espera do socorro adequado. Ele, o desamparado, sangrava nas costas. Tentávamos ver se respirava. Havia sangue noutras partes daquele pobre corpo. A ambulância chegou. O médico constatou que uma legião de larvas devorava aquele ser ainda vivo, mas parecia morto. Depois que foi recolhido, o pequeno grupo que se formara tomava seu próprio rumo quando uma das participantes pediu um instante e apontou para cada um de nós …”um, dois, três, quatro…somos quatro, a solidariedade ainda existe.”
    François, se eu entrar na caverna e contar que três pessoas e eu socorremos alguém que vivo, estava sendo devorado pela morte, diriam :
    “delira”.
    Luto para a minha esperança não desbotar e penso nos meus três companheiros. ..

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