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domingo - 18/12/2016 - 08:58h

Ativismo judicial ou hipergarantismo

Por Honório de Medeiros

Um dos mitos fundantes que norteiam a nossa concepção liberal de Estado é a do contrato social. Por esse mito cedemos a liberdade que supostamente nos é inerente para que o Estado impeça que nos destruamos uns aos outros.

Homo homini lupus, escreveu Thomas Hobbes, o homem é o lobo do homem, o primeiro dos grandes contratualistas. Frase de Plauto, em “Asinaria”, textualmente Lupus est homo homini non homo, expõe a causa-síntese, a constatação que impele o Homem a optar pelo pacto social: em o assegurando, a sociedade regula o indivíduo, o coletivo se impõe sobre o particular, e fica, assim, assegurada a sobrevivência da espécie.

Caso não aconteça o pacto social, bellum omnium contra omnes, guerra de todos contra todos até a auto-aniquilação no Estado de Natureza, é o que ocorreria se imperasse a liberdade absoluta com a qual nasciam os homens, diz-nos, ainda, Hobbes, no final do Século XVI, início do Século XVII – recuperando a noção de contrato social exposta claramente por Protágoras de Abdera, a se crer em Platão.

Essa noção, de pacto ou contrato social, até onde sabemos, foi pela primeira vez exposta por Licofronte, discípulo de Górgias, como podemos ler na “Política”, de Aristóteles (cap. III): De outro modo, a sociedade-Estado torna-se mera aliança, diferindo apenas na localização, e na extensão, da aliança no sentido habitual; e sob tais condições a Lei se torna um simples contrato ou, como Licofronte, o Sofista, colocou, “uma garantia mútua de direitos”, incapaz de tornar os cidadãos virtuosos e justos, algo que o Estado deve fazer.

E muito embora um estudioso outsider do legado grego tal qual I. F. Stone defenda que a primeira aparição da teoria do contrato social está na conversa imaginária de Sócrates com as Leis de Atenas relatada no “Críton”, de Platão, há quase um consenso acadêmico quanto à hipótese Licofronte estar correta. É o que se depreende da leitura de “Os Sofistas”, de W. K. C. Guthrie, ou da caudalosa obra de Ernest Barker.

Entretanto é com Jean Jacques Rousseau, após Hobbes e John Locke, que se firma o mito fundante do contrato social, influenciando diretamente as revoluções Americana e Francesa, bem como o surgimento da ideia de Estado conforme a concebemos ainda hoje.

Em “O Contrato Social”, Rousseau põe na vontade dos homens, da qual emana o Estado após o pacto social, a origem absoluta de toda a lei e todo o direito, fonte de toda a justiça. O corpo político, assim formado, tem um interesse e uma vontade comuns, a vontade geral de homens livres.

Quanto a esse corpo político, José López Hernández em “Historia de La Filosofía Del Derecho Clásica y Moderna”, observa que Rousseau atribui o poder legislativo ao povo, já que esse mesmo povo, existente enquanto tal por intermédio do contrato social, detém a soberania e, portanto, todo o poder do Estado.

As leis, inclusive a do contrato social, que emanam do povo, assim as vê Rousseau: são atos da vontade geral, exclusivamente; “é unicamente à lei que todos os homens devem a justiça e a liberdade”; “todos, inclusive o Estado, estão sujeitos a elas”.

O ideário acima exposto, no qual a lei a todos submete porque decorrente da vontade geral do povo, que detém a soberania – pode ser encontrado em obras muito recentes, como o “Curso de Direito Constitucional”, primeira edição de 2007, do Ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil Gilmar Ferreira Mendes e outros.

Às páginas 37 do Curso, lê-se:

Por isso, quando hoje em dia se fala em Estado de Direito, o que se está a indicar, com essa expressão, não é qualquer Estado ou qualquer ordem jurídica em que se viva sob o primado do Direito, entendido este como um sistema de normas democraticamente estabelecidas e que atendam, pelo menos, as seguintes exigências fundamentais: a) império da lei, lei como expressão da vontade geral; (…)

Assim como é encontrado, expressamente, enquanto cláusula pétrea, imodificável, na Constituição da República Federativa do Brasil, no parágrafo único do seu artigo 1º:

Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Ou seja, o exercício do poder é do povo, que em não o exercendo diretamente, o faz por intermédio de representantes seus eleitos. Eleitos, sublinhe-se. De onde se infere algo absolutamente trivial: enquanto, digamos assim, os parlamentares são o povo, os juízes são servidores do Estado, essa emanação da Sociedade.

Há algo de absurdo, portanto, nessa doutrina do “ativismo judicial” que viceja célere nos tribunais do Brasil, principalmente no nosso Supremo Tribunal Federal.

ENTENDA-se, aqui, como “ativismo judicial”, o “suposto” papel constituinte do Supremo, reelaborando e reinterpretando continuamente a Constituição, conforme afirmação sutil do Ministro Celso de Mello em entrevista ao “Estado de São Paulo”, criando normas jurídicas, seja através da “mutação constitucional”, na qual a forma permanece, mas o conteúdo é modificado, seja por intermédio da identificação de lacunas inexistentes no Ordenamento Jurídico, sempre, em ambos os casos, com fulcro em uma onisciência jurídica que expressa um vaidoso e preocupante subjetivismo, formalizada via uma retórica calcada em princípios abstrusos, confusos e difusos, indeterminados e nada concretos, da nossa Constituição Federal.

Não é por razões ideológicas ou pressão popular. É porque a Constituição exige. Nós estamos traduzindo, até tardiamente, o espírito da Carta de 88, que deu à corte poderes mais amplos, disse, arrogantemente, o então presidente do STF Gilmar Mendes, supondo que fora do “habitat” jurídico, estreito por nascimento e vocação, aqueles que têm alguma formação filosófica possam aceitar que em pleno século XXI a Corte Constitucional seja, para os cidadãos, o que a Igreja foi na Idade Média, quando se atribuiu o papel de intérprete do pensamento e da vontade de Deus.

Pergunta-se: teria o judiciário legitimidade, levando-se em consideração o que acima se expõe, para avançar na seara do legislativo, passando por cima da soberania do povo em produzir leis através de seus representantes, seja preenchendo lacunas (criando leis), seja alterando o sentido de normas jurídicas, seja modificando, via sentença, a legislação infraconstitucional?

Ainda: teria amparo legal o STF para tanto?

É autoritário o cerne do argumento que norteia o ativismo judicial. Sob o véu de fumaça que é a noção de que haja um “espírito constitucional” a ser apreendido (interpretado segundo técnicas hermenêuticas somente acessíveis a iniciados – os guardiões do verdadeiro e definitivo saber) está o retorno do “mito platônico das formas e idéias” cuja contemplação e apreensão é privilégio dos Reis-Filósofos.

É a astúcia da razão a serviço do Poder.

Platão, esse gênio atemporal, legou aos espertos, com sua gnosiologia, a eterna possibilidade de enganar os incautos lhes dizendo, das mais variadas e sofisticadas formas, ao longo da história, que somente “alguns”, os que estão no lugar certo, e na hora certa, podem encontrar e dizer “o espírito” da Lei, o bom e o mal, o justo e o injusto, o certo e o errado.

O mesmo estratagema a Igreja de Santo Agostinho, esse platônico empedernido, por séculos usou para administrar seu Poder: unicamente a ela cabia ligar a terra ao céu, e o céu à terra, por que unicamente seus príncipes sabiam e podiam interpretar corretamente o pensamento de Deus gravado na Bíblia, como nos lembra Marilena Chauí em “Convite à Filosofia”:

A autoridade apostólica não se limita ao batismo, eucaristia e evangelização. Jesus deu aos apóstolos o poder para ligar os homens a Deus e Dele desligá-los, quando lhes disse, através de Pedro: ‘Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as Chaves do Reino: o que ligares na Terra, será ligado no Céu, o que desligares na Terra será desligado no Céu’.

Essa passagem do Evangelho de Mateus será conhecida como ‘princípio petríneo das Chaves’ e com ela está fundada a Igreja como instituição de poder.

Esse poder, como se observa, é teocrático, pois sua fonte é o próprio Deus (é o Filho quem dá poder a Pedro); e é superior ao poder político temporal, uma vez que este seria puramente humano, frágil e perecível, criado por sedução demoníaca (idem).

E, assim, como no Brasil a última palavra acerca da “correta” interpretação de uma norma jurídica é do STF, e somente este pode “contemplar” e “dizer” o verdadeiro “espírito das leis”, aos moldes dos profetas bíblicos, em sua essência última, mesmo que circunstancial, estamos nós agora, além de submetidos ao autoritarismo dos pouco preparados representantes do povo, ao autoritarismo dos ativistas judiciais.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN.

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO diz:

    Não obstante reconheça o brilhante artigo do Professor Honório de Medeiros, só um fato, não pode ser declarado Mito no Brasil.

    O fato de que sempre e sempre o Ativismo judicial ou hipergarantismo, deveras, sempre e sempre está à serviços das forças conservadoras, “coincidentemente” em períodos, nos quais a velha e carcomida direita golpísta, se vê longe do poder institucional e impedida de voltar ao sobredito poder através do voto direto, ou seja do sulfrágio universal, cal a cal, pedra a pedra e almágama maior do processo democrático.

    Na prática, sobretudo no âmbito dos Tribunais Superiores, o judicário brasileito, nap´ratica, ainda atua como se estívessemos ainda no tempo das capitanias hereditárias, com seus Capitães sendo premiados com decisões sobre os mais variados interesses e componentes políticos, econômicos e sociais junto aos seus respectivos e variados estamentos.

    Ante essa realidade, claro, óbvio e ululante que qualquer Lei que diga respito, por exemplo, ao abuso de autoridade atulemnte tão latente e vidente em seuta atos e decisões judiciais, jamais será votada de forma minimamente responsável por parte da quadrilha congressual que atualmente da amparo ao Golpista Mor Michel Temer.

    O fato incontestável, a atual LEI DO ABUSO DE AUTORIDADE, é uma Lei elaborada e aprovada ao tempo da ditadura(Quando os acordos, compadrios e a corrupção entre o executivo, legislativo e judiciário se fazia ainda mais arraigado, sem que houvesse nenhuma forma, de mínima de transparência nas sobreditas relações institucionais) , sendo que, de fato premia e muito bem os JUÍZES, quando evetualmentes, estes, raramente são julgados pelos seus próprios pares, aposentando-os compulsoriamente, deveras, tornando-se um uma provocação e um escarnéu frente à sociedade brasileira.

    O mais são falas, falácias e diversionismos retóricos, “bem, muito bem intencionados”

    Um braço

    FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO.
    OAB/RN. 7318.

  2. naide maria rosado de souza diz:

    Santo Inácio de Loyola! Não sei porque escolhi Santo Inácio, ninguém me recomendou. Acontece que , quando leio ou escuto algo notável, invoco esse santo que já faz parte de minha vida, sem que possa explicar o motivo. A santa de minha avó materna, que me criou, embora na casa de meus pais, era Santa Marta. Então, Santo Inácio de Loyola !!!!
    Prof. Honório, que Artigo brilhante. Posso apenas dizer que , diante da imensidão do entendimento humano, o espírito da lei é interpretado por essa imensidão.
    E, quando há brechas na lei, o entendimento se diversifica de tal modo que chega a superar a fumaça do bom direito. Se a lei escrita é tantas vezes deturpada que dos institutos que conheço, só me curvo diante da fumaça do bom direito. Essa fumaça toca na verdade.

  3. naide maria rosado de souza diz:

    Corrigindo: Sendo a lei escrita tantas vezes deturpada, dos institutos que conheço, só me curvo…

  4. naide maria rosado de souza diz:

    Lembrei-me de Madre Inês, minha professora de Literatura. Disse ela que, certa vez, num monastério espanhol , um clérigo perguntou a um noviço algo sobre Rousseau. O noviço, desejando expor seu saber, num francês perfeito e arrogante, disse: Jean Jacques Rousseau…
    O clérigo, condenando a arrogância, fê -lo dirigir-se a Rousseau como “Rota Punto Rota Punto Russe au”. É só o que posso acrescentar.

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