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domingo - 05/06/2016 - 10:26h

No vazio de uma tarde chuvosa

Por Inácio A. Almeida

Pela janela vejo os grossos pingos da chuva que cai na tarde cinzenta e triste. Não faz frio, apenas o vento que corre traz consigo um refrigério próprio da umidade em níveis altos.

Vem uma sensação de tristeza, de ausência, de solidão, de falta de tudo e de nada.

A tarde teima em ir-se lentamente, bem devagar, com preguiça, num nunca acabar. É como se os ponteiros do tempo estivessem presos e se agarrassem desesperadamente ao agora, pedindo para não irem.

Olho pela janela e vejo nuvens mais negras ainda a prenunciarem que a chuva vai continuar. E fico a pensar que a minha tristeza não é causada pela chuva, mas sim pela diminuição da luz. Alguma herança atávica causa em mim esta sensação.

Lembranças de infância começam a chegar. Um fim de tarde, um quarto escuro, a chuva muito forte, de dentro da rede vejo um coqueiro a balançar suas folhas violentamente.

Estou só, tenho medo, chamo e ninguém me responde. Fecho os olhos e tudo se torna mais escuro ainda. Trovões me assustam, os relâmpagos jogam uma luz muito forte dentro da grande casa. Tenho muito medo, mas aos poucos vou me habituando e já consigo não chorar.

Estou só.

Volto a olhar pela janela, as nuvens estão passando de negras a cinzentas. O vento continua forte, mas a chuva está afinando.

E fico a me perguntar o quanto a natureza tem influência sobre os nossos sentimentos.

A alegria que nos domina numa manhã de sol, o prazer que nos causa o zoar de uma cachoeira, a satisfação ao ouvir o canto dos pássaros. Ah, como é bom pisar na relva ainda molhada pelos pingos do orvalho da madrugada que se foi.

Por que será preciso um tarde triste, escura, que nos traz recordações amargas, para reavivar em nós a beleza que é a natureza com todos os seus contrastes?

Por que será que sempre precisamos do escuro para dar valor ao claro? Por que insistimos em procurar fora o que só pode ser encontrado dentro de nós mesmos? Por que sempre tendemos a desprezar o que dispomos e a valorizar o que não temos? De onde vem este fascínio que o desconhecido nos causa?

Ah, natureza humana, que nos torna sempre dependentes dos outros. Não conseguimos perceber que só precisamos de um corpo sadio e de uma alma tranqüila para sermos felizes. Um dia descobriremos que o valor das coisas não está na coisa em si, mas em quem as possui. De nada adianta ter o que não se sabe utilizar, pois as coisas só são boas para quem as sabe empregar bem.

Existe fardo maior do que o dinheiro para um avarento?

Vou ter que fechar a janela. As nuvens estão ficando negras novamente e a chuva começa a ficar muito forte. Certamente será uma noite sem estrelas.

Existe coisa mais bonita do que um céu estrelado numa noite de verão?

Engraçado. À minha mente veio o pensamento de que tudo o que é bom não custa nada. Ou alguém paga para admirar um céu estrelado, um zoar de uma cachoeira, o pisar na relva molhada ou a beleza que é ver o lindo nascer de um dia?

Lá longe, em algum rádio ligado, a voz do Cauby a dizer que a tarde é fria, que o vento sopra frio, gelando…

Penso em como a sorte é inconstante. Inconstante e necessária. Sem ela não se chega a lugar nenhum. Ou não foi por um rasgo de sorte que nascemos? Ou as grandes e bruscas mudanças que nossas vidas sofrem no seu longo decorrer não dependem do acaso, da sorte?

Um dia aprenderemos que não nascemos para a nossa própria satisfação. Um dia descobriremos que fazemos parte de um grande conjunto e que vivemos para a realização plena de todos. E quando tivermos consciência do que realmente somos, quando então não nos prenderemos a nada a ponto de prejudicar a nossa felicidade, conseguiremos viver.

Viver sem medo, em toda a plenitude, com amor, com felicidade. E neste dia acharemos até mesmo uma tarde chuvosa uma linda manifestação da natureza, pois em tudo há beleza, já que a beleza está em nós.

Olho pela janela. Já não chove e o sol, de uma maneira tímida, começa a ensaiar a sua volta rasgando algumas nuvens ainda carrancudas que trocam a negritude pelo lindo vermelho, formando um quadro mais do que belo.

No rádio que toca lá longe, um cantor com uma voz belíssima canta uma canção do Nonato Buzar. Interessante, não sei o nome deste cantor. Talvez a ele tenha faltado o acaso acontecer e a vida continue a brincar de fazer da vida deste talentoso artista um brinquedo. Um brinquedo a espera que o acaso aconteça.

Inácio A. Almeida é jornalista e escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. JOSE MENDES PEREIRA FILHO diz:

    Parabéns, amigo Inácio!!!
    Excelente!!
    Um forte abraço!!!

  2. Abner diz:

    Ótimo texto, Inácio. Poético e filosófico.

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