Por François Silvestre
Uma obra que põe na boca de um adolescente imaginário inúmeras diatribes, injúrias e gozações, sobre tudo e quase nada, foi denominada por seu autor “O apanhador no campo de centeio”.
Não há campo, nem centeio, nem apanhador. J. D. Salinger não era mais adolescente, quando voltou à adolescência para escarrar na cara da hipocrisia. E como tal não precisou do campo posto no título. Nem do centeio, nem do apanhador.
Tudo no estuário exclusivo da reflexão. Numa fonte de jorrar imagens, aparentemente sem nexo. O mundo e suas paisagens, tendo o homem no centro delas, na visão pura e crítica de um jovem sem qualquer compromisso ou filiações.
A alienação intuitiva, desalienando para iluminar. Ou apagar luminosidades opacas.
Foi um tempo ingênuo, em que o autor cuspiu no prato da bonança. Imagine se fosse hoje. A ingenuidade cedeu lugar à pilantragem. A Inteligência foi vencida pela esperteza.
A depressão ocupou o espaço da melancolia. E a saudade foi desancada pela nostalgia. Tempos de burrice humana, com o pensamento substituído pela programação.
Basta programar no computador e não perder tempo no pensar. E se o computador não souber descobrir as veredas do existencial ou explicar a trilha, tropeça-se na ignorância.
Pra que pesquisar se tudo está devidamente inexplicável? Ou pensar, se o pensamento custa o gasto do tempo à desnecessidade de refletir? Aposenta-se a mente, aprisiona-se a razão e entrega-se a chave do cárcere à primeira mentira que passar.
A estupidez semeia no meio do monturo. E a colheita do esterco oferece-se ante a luminosidade do eletrônico. A rima com histriônico não será mera coincidência.
Teria dito, mais ou menos assim, o personagem adolescente de Salinger: “Até achei bom o invento da bomba atômica. Se houver outra guerra, juro por Deus que sentarei o rabo sobre a bomba… e tudo”.
O adolescente de hoje, imitaria: “foi bom terem inventado essas bombas, vou amarrá-las em torno de mim e explodir pessoas… e nada”.
O personagem de Salinger: “As pessoas estão sempre batendo palmas para o erro… e tudo”. O de hoje: “Preciso errar muito para ser aplaudido… e nada”.
O personagem de Salinger: “Fico imaginado um bando de crianças brincando num campo de centeio, só eu de adulto, para salvá-los do abismo… Apanhando cada um que vai cair, pois sou apenas um apanhador no campo de centeio… e tudo”.
O personagem de hoje: “Se eu soubesse imaginar, o que é imaginar? Pensaria num bando de garotos e garotas no esterco de um monturo, com todos caindo no lambuzar-se do excremento… Eu ficaria onde estava ou me lambuzaria junto, rindo deles e de mim, jogando mais esterco na cara deles… e tudo”.
“Sou o maior mentiroso do mundo”. Diz o de Salinger. O de hoje: “Eu não minto. Sou burro assim mesmo”.
Té mais.
François Silvestre é escritor
* Texto originalmente publicado no Novo Jornal.
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