• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 14/05/2017 - 09:18h

“A última flor do Lácio”

Por François Silvestre

Vivemos provavelmente os tempos do colonialismo cultural mais acentuado da história dos povos.

É bem verdade que não é um fenômeno novo. Em todas as conquistas militares ou de colonizações, o colonialismo cultural sempre fez parte do pacote de dominação. Ou quase sempre. No caso da dominação árabe na península ibérica, houve uma exceção. Os nativos continuaram a professar suas crenças e preservar sua cultura.

O Brasil deixa-se colonizar culturalmente há muito tempo. É preciso ver que há diferença entre aculturação e desculturação. Na aculturação ocorre uma troca entre as culturas que se misturam. Caso exemplar é o sincretismo umbanda-catolicismo que se deu nas relações dos vindos da África com os nascidos daqui. Nesse caso, não há colonialismo cultural.

Outra coisa é a desculturação, quando uma cultura imperial impõe seus modos sobre a fraqueza da cultura invadida. O uso e abuso da língua inglesa, no mundo de hoje, é o exemplo mais nítido da desculturação.

E me traz à memória o diálogo de Próspero e Calibã, n”A Tempestade”, de Shakespeare: Diz Próspero: “Eras uma figura ignóbil e eu te dei compleição humana”. Calibã responde: “Mas a ilha era minha e tu ma tomaste”.

Próspero argumenta: “Mas eu te ensinei a minha língua”. E Calibã rebate: “No que a mim só serve para nela poder amaldiçoar-te”.

Nos tempos de hoje nem para a maldição dos dominadores a língua serve. Serve muito mais para a louvação. Para o embuste. Para consolidar a dominação, sob o manto roto do “progresso” e da globalização. O Globo são os outros. Estou falando do planeta.

A última flor do Lácio” de que falou Olavo Bilac, onde Gil Vicente deu o tom da morfologia e Camões desenhou o esqueleto sonoro da sintaxe, vem sendo maltratada pelos nativos; deslumbrados com a luminosidade econômica das culturas alheias.

O jeito de falar ou escrever na literatura comporta “agressões” à língua, na medida do talento. Não se configura erro.

Contudo nos textos técnicos, opinativos, sobre qualquer assunto, a escrita que agride a língua não é justificável. Na televisão, dando notícias, ou comentando o noticiado, é preciso respeitar a língua. Não se faz literatura em noticiários. Comentem-se erros. Alguns de transformar os ouvidos em penicos.

Os pobres verbos sofrem a diabo na boca dos repórteres. “Houveram atritos”, no lugar de houve. “Fazem dez anos”, no lugar de faz. “Ele reaveu o carro roubado”, no lugar de reouve. “O governo interviu”, no lugar de interveio. “A cartomante preveu”, no lugar de previu. “Se o governo propor”, no lugar de propuser. E por aí vai. Um horror…

Não se cobra pureza linguística nem chatice de regras. Não. O que se cobra é o mínimo de respeito com a língua em que, ao rezar, espantávamos fantasmas, na infância.

Té mais.

François Silvestre é escritor

* Texto originalmente publicado no Novo Jornal.

Compartilhe:
Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. jb diz:

    E por falar em repórter lembrei disto:”Ariano Suassuna conta o episódio do repórter de TV que, empurrando o microfone no rosto do cantador nordestino, perguntou: “E o senhor que é semianalfabeto, como se sente diante das câmaras?” Ao que protestou o repentista: “Eu sou mesmo analfabeto. Semianalfabeto é o senhor”. P.S.-Acho que este episódio ocorreu o poeta Pinto do Monteiro

  2. naide maria rosado de souza diz:

    François Silvestre.
    Compartilho seu brilhante artigo. “A última flor do Lácio” tem sido espancada. Mesmo sendo a última, é tão rica que temos, em caso de dúvida, várias formas de igual sentido para nos expressarmos.
    Usa-se tantos termos estrangeiros, principalmente ingleses, que, a qualquer hora, poderemos conversar em inglês.
    Ontem, Dia das Mães , recebi de presente dos meus filhos, em mutirão, esse “notebook” que inauguro escrevendo para você, reiniciando também, à medida em que meu coração sofrido permitir, minhas conversas no Blog do Jornalista Carlos Santos.
    Agradeço, novamente, por ter compartilhado a minha dor, suavizando-a.
    Grande abraço.

  3. Elves Alves diz:

    Ah, se a ditadura do proletariado fosse implantada no Brasil!
    François Silvestre seria um “paulo freire” de ocasião.

Faça um Comentário

*


Current day month ye@r *

Home | Quem Somos | Regras | Opinião | Especial | Favoritos | Histórico | Fale Conosco
© Copyright 2011 - 2024. Todos os Direitos Reservados.