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domingo - 04/12/2016 - 11:14h

Espectros da noite – universos e sombras

Por Marcos Pinto

Qual o tamanho da noite? A noite tem o tamanho do tamanho que a noite tem. Nenhuma noite é maior que aquela quando o homem está só” (Lude Mendes)

Quando  Deus  criou  o  mundo,  enfeitou  magnificamente   a  noite  com o  brilho  mágico  da  lua e  a luz  especial  das  estrelas,  imprimindo-lhes  um  encantamento  voluptuoso  aos  olhos  das  almas  ardentes.  Inspira  poesia  em  demasia  aos  poetas  notívagos.

A  esses,  não importa  o  tamanho  da  lua  nem  a  quantidade  das  estrelas.  Nossos  boêmios  noturnos  sempre  deixam  impressões  de  fidalgos empobrecidos  e  orgulhosos, verdadeiros  “poços  de orgulhos”, altivamente  desocupados, desafiadoramente  ociosos   –  espécimes  de  rasgos de  ócio.

Cínicos  para  sobreviver  a  má  sorte, são  donos  de  humor  satírico, a   princípio   ingênuo  e  depois  perverso  até  onde vai  a pilhéria.

Patéticos  e  estoicos  nas  suas  pobrezas  duramente  escondidas.  Mais  pose  do  que  capacidade  intelectiva.  Irrequietos  folgazões com horizontes  limitados,  acumulando  contratempos, dificuldades  cruentas  e  até  desfechos  em  crimes  passionais.  Ocultam  suas  dores em pileques  etílicos   homéricos.

O  alcoolismo  tem  o  poder  de  nos  transportar  ao  mundo  das  evocações  silenciosas,  restritas  ao  ego, de coisas  vividas  ou  simplesmente imaginadas. O seu  manto  apresenta-se  sob  vários  matizes. Escura   e  silenciosa,  a  noite  acumplicia-se ao  universo  dos  espectros malignos  e  imaginosos, projetando  sombras  maquiavélicas   cheias  de  inventivas  mortais.

Os  espectros  do mal  aproveitam-se  do  crepe para  concretizarem  o  golpe  fatal,  forjado  na  virulência  letal  e  exterminante.  Os  mistérios sombrios  da noite  emolduram-se  de  forma magistral  ao  silêncio  e  a  escuridão, como  marcas inconfundíveis.

Emite imagens  fantasiosas  nas  mentes das  crianças, surgindo  em forma  de  lobisomens,  mulas-sem-cabeças, papa-figos, tipos  tradicionais das  ruas  e  das  estradas.  Essas  figuras  lendárias da  noite  tem surtos  de  aparição  em “suas  horas”,  essas  “horas”  que  elas  próprias escamoteiam,  burlando  armadilhas  em forma  de  emboscadas.

Ao  despontar  do  dia, servem  de  elementos  fomentadores  aos  cochichos dos  madrugadores  desocupados, criadores  de  estórias envolventes de  honras  alheias,  em conclusões  precipitadas. Nas  guerras, os  universos  de  estratégias bélicas são formatadas  no  silêncio  da  noite.

Esta, por  sua  vez,  tem  sido  diuturna escola  tanto  para  homens  rudes,  educados  na  valentia, como para  homens  de  singelos  hábitos e  de imperturbáveis  serenidades, o  que lhes  proporciona  estoicismo  ante  as  adversidades.

Noites  que retratam  sem  retoques  homens  e  fatos  em  suas   exatas  configurações. Na  juventude,  a  noite  é  um  romance, desejo  incontido de  que  as noites  de  amor  durem  a  noite  toda.

Na  velhice,  é  um recordar  incessante, com  a  ansiedade  premente  de  um  rápido amanhecer.   Durante  a  noite  dos  idosos a  vida  pesa indubitavelmente monótona,  e  ás  vezes  cheia  de  agonias.

Todos  nós  temos  nossas horas  de angústias  e  aflições  caladas  e  reprimidas  na  solidão  da noite.  Revela-se  atroz  no  ermo  de  nossas almas  feridas,  sem  perspectiva senão a  de  ver  o  último  sol  se  por.  Equilibramo-nos  de acordo com as  circunstâncias  entre  tendências em conflito  e  a  permanente insatisfação  com  o  modo  de  vida. Não  há  como  deixar  de   escapar um  traço  de  recalque  e  de  rancor.

A   noite  engendra  conspirações com  requintes  de   pormenores,  que  até  a  lucidez  mais  moderada se  deixa  eclipsar.  Satura  a  alma  de ilusões  e  desencantos, testemunhando  ao  longo da  vida  o  triunfo  quase  sempre  da  utopia  deprimente.

Revelam  uma  multiplicidade  de portas  e  partos prematuros  de  sonhos  irrealizáveis. Espreita  com  precisão  cirúrgica  a  distância  das recordações, promovendo presenças, mapeando estratégias, catalogando tristezas, revelando instigantes e voluptuosos desejos.

Inté.

Marcos Pinto é escritor e advogado

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Nazaré Brandão Noronha diz:

    Olá Marcos Pinto, é sempre um aprendizado ler tudo que você escreve…é a mais pura verdade, todos nós temos nosssas horas de angústias e aflições caladas e reprimidas na solidão da noite, ah noites…noites longas intermináveis. Obrigada por cada palavra…Deus te abençoe.
    Nazaré Brandão Noronha. Manaus-Am.

  2. naide maria rosado de souza diz:

    As dores parecem insuportáveis à noite. A preocupação, mesmo se pequena, agiganta-se . Consegui fugir dos motivos de minha insônia ou preocupações que me afligem. Não me julgue insana, Marcos Pinto. Faço viagens noturnas . Vou para o Alaska. Tenho lá uma casa aconchegante de madeira. Mesmo assim , ainda é cercada por vidro. Toda cercada por vidro. Dois lobos que crio desde pequenos, fazem a minha guarda. Helicópteros que fornecem mercadorias à Anchorage abastecem a minha cozinha. O vento sopra gelado, mas lareiras aquecem o lugar. Tenho um cobertor delicioso de pele de urso . Acredito que meu lugar da noite tenha um pé no “National Geographic”. Enfim, o barulho do vento e sua força afastam os pensamentos que me incomodam. Caso um dos meus netos tussa durante a noite, desapareço do Alaska e, em segundos apareço ao lado de quem tossiu .
    É como uma viagem que embala meu sono. Dia desses, uma de minhas irmãs me ligou para dizer que sonhara comigo e que, estranhamente, eu morava numa casa de vidro. Expliquei que o sonho tinha sentido..A casa de vidro cercava a de madeira. Existia. Era minha indutora do sono. Impressionada fiquei com o fato de Tininha, minha irmã ter chegado lá. Ela ficou meio assombrada.

  3. naide maria rosado de souza diz:

    “Uma parte de mim
    é todo mundo :
    outra parte é ninguém :
    fundo sem fundo.
    Uma parte de mim
    é multidão :
    outra parte estranheza
    e solidão.
    Uma parte de mim
    pesa, pondera:
    outra parte
    delira.”
    Ferreira Gullar

    Ele, o grande Ferreira Gullar, entenderia meu Alaska.

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