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domingo - 17/09/2017 - 09:14h

Pátria de taipa

Por François Silvestre

Até a lama, no Brasil, é plural. Alcança proa e popa. E corre conforme o curso das margens do rio que tudo arrasta; sobre as quais ninguém diz violentas, como ensinou Bertolt Brecht, e só acusa de violento o próprio rio. Nesse vasto leito há lamas para todos os sentidos.

Em Natal há uma família que tem o sobrenome plural de lama. Os Lamas. Tradicional clã; no mundo empresarial, cultural e esportivo da Cidade. Figuras marcantes da vida de Natal. Nada a ver com as outras lamas.

Nem com a lama da natureza. Talvez com os Lamas do Concelho de Braga, em Portugal. (concelho com “c”, correspondente a município, pá) Que nos leva ao Café Lamas, do Rio de Janeiro.

O texto é sobre dois tipos “especiais” de lama. O primeiro, a lama da natureza, que se faz da mistura de água com barro. A lama necessária e indispensável. Muito mais do que o mito hebraico da criação e nomeação adâmicas.

A mistura de barro e água na feitura da casa de taipa. Não a taipa portuguesa, da feitura ibérica. Refiro-me à moradia do Nordeste, arquitetura ímpar. Sala da frente, corredor estreito, cozinha, quarto de dormir, quarto dos filhos, pequena despensa, e latada na frente.

Armação das paredes com mourões de pereiro, estacas de mororós e varas de marmeleiros. Montado o esqueleto da casa, com as varas entrelaçadas entre as estacas, o jogar da lama de barro, umedecido, ainda meio mole, entre as frestas das varas. De forma que essa mistura feito lama vai ocupando os espaços e tapando os buracos.

São os tijolos que saem das mãos do obreiro, sem ter a forma de tijolos. São mãozadas de lama, em rebolos, que vão virando paredes.

Até que a casa se feche. Vedada e segura. Só aí se faz a latada. De barro batido, no piso, para ser lugar de reunião e festa. Coberta de palha, que pode ser da carnaúba, do catolé, do coqueiro ou até da rama de oiticica. Depende da franquia do lugar. O resto da casa cobre-se com telhas.

Ali se reúnem parentes e vizinhos. Toque de fole ou cantoria de violeiros. Cego Aderaldo inventando Zé pretinho. Pinto do Monteiro desafiando Inácio da Catingueira. Zé Limeira dando à mulher do governador um quilo de merda de raposa numa casca de cana piojota.

É dessa lama que se fazem os açudes. Água e barro também, carregada no lombo de jumentos. Antes dos jumentos serem habitantes abandonados das estradas.

A lama que desce das barragens arrombadas de Mariana, mais antiga cidade de Minas, não é culpa da lama. E sim do lamaçal em que se transforma o Brasil, país de taipa. Sem latada.

A outra lama, pior de todas, é a que escorre fedida nos esgotos do poder. E aí somos nós que viramos jumentos, habitantes e deserdados na vastidão do lamaçal. Não há lavanderia ou lavajato que espante essa lama, feitora da nossa pátria de taipa. Té mais.

François Silvestre é escritor

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Categoria(s): Artigo

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